quinta-feira

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Acordo depois de me adormecer. Levo o corpo ao colo; o repouso quieto aguarda por mim. E eu vou e estou onde o instante de estar é levado pelo peso atroz do ar. O ar que mantém o corpo de pé, ansioso e consumido de cansaço. Uma respiração gasta por palavras e gestos caídos em lugar sem fim - vertido aço. E eu vou e estou onde deixei de estar e de ser

(...)

- Não há história da palavra mas, inalteravél, uma história do silêncio. A palavra repete-a constantemente para nós.

- Do solêncio só conhecemos o que palavra nos pode dizer. Quer queiras quer não, só a palavra confirmamos.

- Quando lês, em voz alta, um texto, não é a tua voz que ouves? A história do silêncio é um texto. A escuta do silêncio, um livro.
O instante diz. A duração é dita. A duração é ausência, e o instante, um vestígio revelado de uma ausência revelada a si mesma.
A palavra não será mais, talvez, que uma sucessão de passos sonoros nos passos destronados de um universo que desapareceu sob as areias.


Edmond Jabés, A Obscura Palavra do Deserto - Uma Antologia, Livros Cotovia 1991, p59 

terça-feira

E as flores, para que são as flores?


Neste momento parte da noite observa a aragem do dia. O nevoeiro cerrado preenche o vazio pleno da montanha, o verde-escuro encontra a sua forma em folhas e ervas caídas e presas em ramos onde o orvalho habita. O silêncio ouve a respiração da humidade, o sopro do vento é tocado por suaves brisas.     Enquanto eu, agarro o corpo, seguro as mãos, lanço-me à encosta íngreme com um fardo às costas. Um grande e pesado fardo de flores. Assim que o cimo da montanha se chega aos meus pés, deito por terra o peso. Observo o comboio que parte e se deixa levar pelo infinito. Eu permaneço tranquila, em mim, sabendo que a minha chegada tinha sido a permissão para a sua partida.

sábado

Lido ao acaso

Como esta vida não é mais do que uma sucessão de provações, pouco importava que as provações fossem desta ou daquela espécie, desde que provocassem o efeito a que se destinavam e, por consequência, quanto maiores, mais fortes e mais numerosas elas fossem, mais vantajoso era saber suportá-las.

Jean-Jaques Rousseau, Os Devaneios do Caminhante Solitário, Livros Cotovia 2º edição 2007, p41

sexta-feira

Mesmo que encerre os meus olhos a respiração continua

Encontro uma folha enquanto respiro em silêncio, nela me deito em corpo e espírito e me demoro. Defronto uma respiração alargada que me desfaz. Desamparo palavras ao silêncio que se demora na minha companhia, estendo a mão onde ele se dissolve em mim e eu lhe confesso que fique. Fique até eu adormecer em cuidado e abra a porta para sair à rua do sonho onde a probabilidade existe em ser real. Em ser árvore - silenciosamente fixa permanentemente em movimento - comigo na rua permaneço ao achado e assim caminho levando os passos e os olhos mais à frente tocando a observação. Fui ao sol buscar – mando o ar cá para fora, ele cansa-me cá dentro

quinta-feira

Sem estar à espera

Sento-me, recomponho o corpo, olho em frente. Observo a imagem devolvida pelo espelho; alguém a olhar e a sorrir. Eu retribuo. Aquele sorriso naquele momento eram todas e as únicas palavras que estavam a ser ditas, e eu escutei com toda a atenção. Dentro da conversa alguma agitação, sinto-me a ser cuidadosamente tocada a partir das pontas dos cabelos até chegar ao pescoço, a respiração alcança um arrepio. Os meus olhos vão-se fechando, permanecendo devagarinho no escuro onde se vê um branco e algumas cores. A massagem termina. Sou convidada a sentar-me noutra cadeira. Vou expondo o meu pedido, observando o que me é dito. A nossa melhor conversa centra-se num olhar atento aos lábios, são eles que dão voz às palavras onde toda a linguagem está imersa em gestos sorrisos olhares e as mãos. As mãos a fazerem o que de melhor sabem, tocar, sentir, fazer. Durante esta permanência de momentos e uma satisfação de sorrisos, a linguagem verbal não respirava para poder ser dita através da voz. Quando não se tem voz, a beleza do mundo dirige-se a outros sentidos. Quando não se espera ouvir uma palavra, alcança-se uma infinidade de diálogo. Mesmo que este decorra num cabeleireiro.

... ...

(...) o melhor é agarrar à passagem o que a terra nos pode oferecer!


François Cheng, O que Disse Tianyi, Ed. Bizâncio, 2º edição 2001, p19

CONFERÊNCIA DE SIMEON LOCKHART NELSON NA ESAD.CR - CALDAS DA RAINHA‏

O artista plástico Simeon Lockhart Nelson apresenta no próximo dia 25 de Janeiro uma conferência na Escola Superior de Artes e Design das Caldas da Rainha, subordinada ao tema ‘Máquinas Desejantes; por uma Metafísica Sincrética do Computacional, do Ornamental e do Divino’.

Na sua intervenção, o criador contextualiza a abordagem da sua produção artística, enquanto articulação entre natureza e tecnologia, que fundamenta filosófica e historicamente a partir de uma teorização do ornamento. Presentemente, Nelson utiliza na sua escultura processos de base computacional na criação quer de instalações interdimensionais (representação da quarta dimensão do tempo, mudança, crescimento e decadência), quer de trabalhos focados na representação digital (explicitando uma linguagem de bitmaps e linhas vectoriais).

No quadro da dicotomia entre reducionismo e holismo, Nelson contribui para este debate tão actual nos campos da ciência e da filosofia, a partir do modus operandi das artes plásticas.

Evento em Língua Inglesa.
Abstract e breve biografia em anexo.

Simeon Lockhart Nelson encontra-se em Portugal para participar na exposição colectiva OBJET PERDU, que inaugura no próximo dia 28 de Janeiro na PLATAFORMA REVÓLVER em Lisboa.

www.simeon-nelson.com


ESCOLA SUPERIOR DE ARTES E DESIGN
CALDAS DA RAINHA ˆ CAMPUS 3
Rua Isidoro Inácio Alves Carvalho
2504-917 Caldas da Rainha ˆ Portugal
Tel. + 351 262 830 900 ext:385

quarta-feira

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(...) quando chegar à idade de compreender porque é que os Chineses são tão apaixonados pelas nuvens, porque é que usam a expressão "nuvens e chuvas" para designar o acto de amor e o estado de êxtase, porque é que os poetas e os tauistas falam de "Comer brumas e nuvens", de "Afagar brumas e nuvens" e de "Dormir com brumas e nuvens". No fundo, o que é a nuvem? Donde vem? Para onde vai? Eu que tinha todo o tempo para a observar, via que ela nascia do vale sob a forma de brumas, depois subia às alturas até atingir o céu onde podia vogar à vontade e tomar todas as formas, ao sabor do tempo, ao sabor do vento. De vez em quando, como se não se esquecesse da sua origem, consentia em regressar à terra sob a forma de chuva, cumprindo um percurso circular. Portanto, estava sempre algures mas não era de nenhures. Então o que era? Nada. Mas parecia que sem ela o céu e a terra tinham sido monótonos.

François Cheng, O que Disse Tianyi, Ed. Bizâncio, 2º edição 2001, p19

domingo

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De certo modo, a vida é arte. Seja ela breve ou longa, sejam quais forem as circunstâncias que tenhamos para a viver, todos queremos sempre fazer o melhor que pudermos dela - o melhor, não só em relação à técnica de viver, mas também precisamente no que diz respeito à compreensão do seu sentido. E isso significa aceder a um vislumbre do seu mistério.


Gusty L. Herrigel, Zen e a Arte do Caminho das Flores, Assírio & Alvim
, 2002, p.7

sábado

A rua dentro de casa.

Em forma de adaptar o seu corpo à cadeira, descruza a perna direita, cruza a esquerda, inclina ligeiramente a cabeça encostando-a ao azulejo, passa a mão pelos seus finos cabelos e olha, olha particularmente. Demonstra uns pequenos gestos que vão reflectindo uma ligeira tentação de concertar o jeito da conversa que no seu entender era pouco coincidente com aquele momento. Enquanto ouvia, escutava o silêncio das palavras e lá dentro o encontro já lhe tinha dito.

Caminha cuidadosamente o chão através dos seus pés durante o tempo suficiente para chegar onde pretende. Agarra nas mãos, empurra a porta, entra. Põe o seu olhar a olhar em direcção à rua que se orienta à sua frente, enquanto observa encosta o corpo a um grande alicerce branco. Aguardando que a espera termine, decide voltar à rua que estava particularmente agradável naquela noite da semana, apesar do frio que corria no meio das pessoas. Mas o tempo estava quase a parar assim que vira o corpo e o olhar toca.

sexta-feira

A rua dentro de casa.

Imagina uma cozinha ampla, com todos os electrodomésticos que nela dispôem a sua forma. Enquanto tu entras ou julgas entrar, já uma pessoa ocupa o espaço. Lanças o teu corpo a uma cadeira de tons azuis onde o descansas, onde os teus olhos permanecem num olhar atento à prosa e aos alimentos que se preparam cuidadosamente, aos gestos da fala, às palavras proferidas, à escuta de uma conversa. Mas o que está a ser dito.


Mesmo ao lado, o corpo sai de casa marcando a viagem numa ausência incerta do seu destino. O seu único conhecimento é uma rua que sobe, outra que desce, uma curva a direito, a paragem do corpo, o olhar à espera do sinal verde, uma passadeira a atravessar, a longa rua a mover-se a cada passo, a entrada no metro e a sua saída. E quando o corpo entra na rua outra vez o olhar é absorvido.